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quinta-feira, 7 de março de 2013

Arte e Vida, Vida e Arte por Ricardo Resende


“Para que eu seja um poeta, preciso de não ter o que fazer. Meu trabalho é o de fazer vadiagem com as palavras”, disse Manoel de Barros, em entrevista.1

A vadiagem, nas palavras do poeta, tem um sentindo de contemplação do mundo e é nesta contemplação ou vadiagem, segundo Manoel de Barros, que a experimentação artística encontra seu lugar possível. Vadiar com o pensamento, vadiar na reflexão, vadiar na criação, vadiar com a arte. E neste contexto que se dá a criação poética, que as ideias fluem e as transformações humanas acontecem.

Para ser sincero, ultimamente, tenho mais vontade de vadiar, ou melhor, de divagar, de contemplar a arte, do que de falar e pensar, obrigatoriamente, em uma função profissional ou acadêmica sobre arte, em especial, quando tais reflexões  estão pautadas em temas ou recortes com um viés “estatizante” e filosófico que acaba por tornar tudo um tanto igual e alinhado ao discurso vigente, perigosamente homogeneizado na era pós-globalização, feito de imagens que não aderem, que não instigam e não nos tiram do lugar comum. E pior, que tornam a arte uma disciplina, uma disciplina acadêmica para poucos.

A arte deve se comunicar diretamente para o público, instigando-o com questões que o perturbam, que o tiram da normalidade, que fazem com que sua memória lateje. Se a arte não nos causa estranhamento, a criação artística não faz sentido.

Assim, a arte pode ser um “meio” para se pensar, refletir ou “vadiar” sobre as questões que afligem o homem contemporâneo. Nesse sentindo, na atualidade, arte e vida se unem e se transformam em uma coisa só. Desse modo, tratar a arte como uma experiência de vida é, sem dúvida, a busca maior para os artistas da atualidade. Não dá mais para esperar que o artista, ao se fechar em seu ateliê, traga ao mundo apenas pinturas de cores planas ou vazias de inquietações, ou seja, obras artísticas ancoradas no porto seguro do mercado e das instituições consagradas à arte. Espera-se do artista que se sujeite aos riscos necessários da experimentação artística e estética.

Felizmente, o que se observou na seleção de trabalhos do Edital Arte Londrina 2012, que resultará em três mostras no decorrer de 2012 e 2013, foi a priorização de questões prementes da arte contemporânea, o que é bastante positivo, pois esta é a função de uma universidade que abriga um curso de arte, ou seja,  abrir espaço para a produção emergente e difundir esta produção acadêmica de forma não hierárquica e aberta à sociedade londrinense.

Não foi proposto um tema para o Edital e nem houve, por parte da comissão selecionadora, a eleição de uma orientação para nortear as escolhas, que se deram de forma natural, formando conjuntos ou arranjos específicos.

Foi uma surpresa, no decorrer do processo seletivo, a potência de muitos dos trabalhos selecionados.  Mais de 50 artistas, entre os cerca de 140 inscritos, participarão das mostras coletivas na Casa de Cultura da Universidade Estadual de Londrina. Artistas jovens, muitos deles ainda cursando a universidade, revelaram um olhar aguçado sobre a atualidade, pois abordaram questões que afligem o homem contemporâneo.

Os trabalhos compõem um conjunto coerente, sem complexidade conceitual e atento a questões da arte do século XXI. São trabalhos em escala menor, em que predominam o desenho e o gesto pequeno e contido, que aludem ao cotidiano e à vida nas cidades ou que  observam o outro, a natureza e as relações com a vida. Não se poderia falar de conteúdo em arte para alguns artistas e críticos de arte, há bem pouco tempo.

O resultado do Edital ARTE LONDRINA, posso afirmar depois de passar por outros editais de arte, como o 30º Salão de Arte de Ribeirão Preto, em 2012, e o Arte Pará - 30 Anos, em 2011, está em sintonia com a produção artística dos grandes centros de arte como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. Para confirmar esta atualidade, pode-se citar que muitos dos temas apresentados são vistos nas obras expostas na 30ª Bienal Internacional de São Paulo, aberta ao público em setembro de 2012, uma bienal que não peca pela monumentalidade dos trabalhos, pois não traz obras barulhentas ou que exigem a interação física do público para se expressarem e nem os costumeiros nomes de artistas badalados pelo mercado de arte que ofuscam os demais.

Na Bienal de São Paulo como no Edital ARTE LONDRINA, são muitos os trabalhos que tratam do cotidiano, das coisas pequenas e de situações comuns do dia a dia, assim, parece ser este o tema que influencia a arte contemporânea. A poética está nas pequenas ações, nos pequenos registros feitos pelos artistas, o que não deixa de ser um gesto político da arte, em um momento em que a humanidade parece ter rompido com o mundo natural, com a natureza e com uma vida simples.

Neste contexto, quando as pessoas se mostram mais “desumanizadas” e tecnológicas, por serem mediadas por equipamentos eletrônicos, os artistas parecem buscar um fazer artístico que se traduz como um contraponto a isto tudo, pois criam trabalhos mais elaborados, mais artesanais, que têm como suporte linguagens tradicionais, como o desenho e a gravura, fruto, talvez, de um certo desencantamento com o mundo digital e imaterial atual.

No resultado do Edital ARTE LONDRINA, encontramos desenhos, pinturas e algumas fotografias, como as imagens silenciosas de Gabriela Lissa, que captam o interior da casa de seus avós, povoada de memórias, um ambiente besuntado da afetividade dos que ali viveram. Esta é a magia de um trabalho que mexe com os nossos sentidos, pois revela as lembranças delicadas de um cotidiano intensamente vivido. Embora seja uma fotografia, sente-se a umidade e os cheiros do ambiente no ar, escuta-se o ranger de portas e janelas, ouve-se a fala silenciosa de seus avós na penumbra do lugar.

Os temas dos outros trabalhos selecionados variam, pois abordam desde a História da Arte até questões relativas à identidade e ao gênero, à sexualidade e  à sensualidade e à simbiose do homem com a natureza.

Parece que a escolha de tais temas constitui mais um contrapondo à eletrizante e barulhenta arte que resulta da globalização, vista em obras grandiosas, dispendiosas, inacessíveis e inofensivas ao público. Há uma despretensão plástica nos trabalhos vistos na seleção do Edital ARTE LONDRINA, mas, por outro lado, há um sentimento de urgência nessa simplicidade, um desejo latente de compreensão do mundo, desse mundo que parece ter sido corroído e corrompido pelo homem.

Como os artistas estão a frente dos homens comuns, graças a sua sensibilidade aguçada para perceber as coisas, estas questões que parecem banais sinalizam a necessidade de mudanças nas projeções futuras. É como se o artista voltasse para o seu entorno e observasse as coisas simples do dia a dia das pessoas, das cidades e da natureza, para trazer um novo olhar para o que é local e que está nesse entorno, ao alcance das mãos e do olhar. É como se deixassem de olhar para o futuro, como prega a ideia progressista do capitalismo, que sempre trabalha com projeções futuras de lucro, de produção e de investimento, para olhar para o presente, para o agora.

De fato, falta-me paciência, hoje, para falar de uma arte que está em consonância com as galerias de arte comerciais, cujo fim é apenas um, o de apenas atender os interesses do mercado.

Pelo meu modo de vida e de ver a arte, este desejo de deslocamento e esta busca por outras culturas e outros modos de vida estão evidentes em mostras importantes, como a mencionada Bienal de São Paulo, assim como, nos trabalhos selecionados  pelo Edital ARTE LONDRINA.

Parece haver necessidade de convívio, de contato, de uma livre troca com outras pessoas e culturas. O acúmulo de conhecimento e experiências é consequência desta nova condição do artista que circula ou “vadia” pelo mundo.

Estes questionamentos são abordados por Nicolas Bourriaud, em sua teoria da Estética Relacional, que reflete sobre a necessidade que o artista contemporâneo tem de interagir e conviver num ambiente de trocas, de experiências e socialidade.
Essa vertente convivial - sociológica - da arte (e não é que ela não existiu antes) gera um acúmulo de conhecimento que resulta em experiências estéticas e relacionais naturais a todos os indivíduos.

Viver é acumular experiências e a arte, em tempos de arte relacional, torna-se, cada vez mais, resultante de experiências sociais.

Investe-se no indivíduo. Investe-se na formação do artista. Investe-se em seu deslocamento. Investe-se no acúmulo de informações. O acúmulo de conhecimento faz parte da natureza da contemporaneidade, um acúmulo  que, não necessariamente, tem que ser compartilhado. O compartilhamento dessa memória, porém, pode se dar no trabalho de arte ou, mais especificamente, nas práticas artísticas processuais. A iminência poética, como justifica o curador venezuelano, Luiz Perez-Oramas, foi o quesito para a escolha de trabalhos para a mostra da Bienal de São Paulo de 2012.

Na atualidade, exposições e teorias apresentam títulos bastante sugestivos que dizem respeito ao que foi aqui discutido: Como viver junto; Em vivo Contato; Como construir mundos; Arte Relacional; Sociedade Líquida; Amor Líquido; Há sempre um copo de mar para o homem navegar; A Contemplação do Mundo e a Iminências das Poéticas, título da última bienal de São Paulo.
No entanto, a transculturalidade ou a arte e a vida que se cruzam já era entendida muito antes deste fenômeno atual, como relata, em entrevista, o pianista e compositor de jazz norte-americano Dave Brubeck, que revolucionou este gênero musical, há mais de 50 anos, com o disco Time Out, ao mencionar o que lhe ensinou seu professor, Darius Milhaud:

Milhaud falava com frequência da época em que viveu no Brasil e como o país influenciou sua linguagem musical. Ele me relatou suas viagens pelo interior do país para ouvir canções folclóricas que o inspiraram a escrever algumas de suas mais populares e encantadoras peças. O conselho que me deu, então, foi viajar e manter os ouvidos abertos. Ele acreditava firmemente na importância de ouvir música folclórica de diferentes culturas, citando particularmente o caso de Stravinski e Bartók, cujos trabalhos foram marcados por essa aproximação. De algum modo, a introdução de ferramentas clássicas no jazz é semelhante à adoção de métodos de composição clássica de Milhaud para incorporar a música folclórica brasileira (O Estado de São Paulo, 18/12/10).

Esta experiência artística relatada ocorreu há mais de 50 anos, assim, o que vem antes é mais importante do que a obra de arte em si, pois, de alguma maneira, o conhecimento acumulado se transforma em conhecimento coletivo quando o artista leva seu trabalho para o espaço expositivo e o divide com o público.

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